"Quem matou Rodrigues Alves?” – em: Schwarez, L. M. e Starling, H. M - “A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil”. Cap.10 pg. 292_317, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 2020.
Rodrigues Alves presidiu o Brasil entre 1902 e 1906. Fez um governo movimentado. Promoveu uma ampla reforma urbana e um intenso programa de controle de epidemias no Rio de Janeiro, realizados com austeridade pelo prefeito Pereira Passos e pelo sanitarista Oswaldo Cruz.
Auxiliado pelo Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores, resolveu disputas territoriais com países vizinhos (Bolívia, Equador, Peru e Argentina) consolidando as fronteiras nacionais.
Por outro lado viveu momentos de intensa convulsão social e forte tensão política em 1904, quando da revolta da vacina e do levante da Escola Militar da Praia Vermelha.
O Conselheiro, título outorgado pela regente Princesa Isabel no final do reinado e mantido durante toda sua vida pública, foi reeleito presidente do país em março de 1918 com a maioria avassaladora de 99,03% dos votos. Em novembro, as vésperas da posse, comunicou em carta ao Congresso Nacional e ao vice-presidente eleito Delfim Moreira que “por motivo de força maior” não poderia assumir o cargo no dia 15 conforme o previsto. Delfim Moreira tomou posse interinamente e nomeou o ministério escolhido pelo presidente eleito.
Rodrigues Alves morreu em 16 de janeiro de 1919 em sua casa do Rio de Janeiro sem assumir a presidência. Sua morte causou grande comoção. Conforme a constituição de 1891 o presidente interino convocou novas eleições para 13 de abril do mesmo ano.
Interessa ressaltar o que as autoras chamaram “o grande mistério” que se fez sobre a causa da morte de Rodrigues Alves. Embora a imprensa tenha divulgado, mesmo que sem destaque, os termos do atestado de óbito onde a causa básica da morte é apontada como “assistolia aguda no curso de anemia perniciosa1”. Impressiona as autoras que: “a causa da morte do presidente eleito (...) aparece constantemente referida até hoje – em reportagens jornalísticas e nos livros de história – como sendo a gripe espanhola”.(ver artigo "primavera sombria").
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No início de Novembro o jornal A Noite enviara um repórter a Guaratinguetá2 para apurar boatos a respeito da saúde do Conselheiro. No dia cinco publicou que seu estado de saúde era “melindroso”. A matéria lembrava que Rodrigues Alves tinha problemas de saúde antigos, crônicos e graves. Eleito presidente do Estado de São Paulo em maio de 1912 afastara-se do cargo por 16 meses entre 1913 e 1915 devido à anemia perniciosa, doença debilitante de evolução lenta. Acrescentava que “há dez dias o conselheiro teve uma crise muito grave, que alarmou muito os que o cercam” e que nova crise poderia comprometer a posse.
No dia da posse Rodrigues Alves continuava em Guaratinguetá incapacitado por problemas de saúde. Seu impedimento fez saber a todos que o Conselheiro estava doente e teve grande repercussão. No entanto as informações sobre sua saúde eram desconexas e contraditórias, poucos conheciam sua real situação. Parte da imprensa atribuía a precariedade de informações “ao jogo dos interesses políticos”.
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À época toda a imprensa dedicava ampla cobertura à gripe espanhola. O número de mortos, as medidas para conter a doença, as personalidades vitimadas, tudo era noticia diária. Nenhum jornal publicou que Rodrigues Alves fora atingido pela gripe, mas à falta de informações precisas começaram a circular rumores de que a espanhola impedira a posse. Após a sua morte a versão de que o Conselheiro “pegou a espanhola e morreu” transformou-se em boato, encontrou circunstancias sociais favoráveis “para crescer e se espalhar pelo país, e conquistou tamanha força que se transmitiu no tempo até os dias de hoje”.
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Rodrigues Alves foi indicado candidato à presidência da república em junho de 1917. Após um trabalhoso acordo entre oligarquias estaduais uma convenção da qual participaram 192 deputados e 52 senadores aprovou seu nome por unanimidade.
Em três de novembro do mesmo ano Altino Arantes, presidente de São Paulo, foi alertado de modo reservado por um dos filhos de Rodrigues Alves, médico, de que o pai estava mal de saúde e não deveria ser candidato. No dia 29 um deputado do próprio Partido Republicano Paulista, também médico, voltou a prevenir Arantes sobre o risco de lançar a candidatura, pois uma vez eleito havia grande chance de não tomar posse dali a um ano devido à saúde precária.
As autoras indagam: “se as condições de saúde eram precárias, qual a razão da escolha rápida e da insistência do PRP – e também de Minas – em sustentar, a qualquer custo, a candidatura da Rodrigues Alves?”.
Minas e São Paulo constituíam o centro de poder durante a Primeira República. Em 1913 celebraram um pacto (informal) a fim de alternarem-se na presidência do país 3 . Para viabilizar tal pretensão era necessário, a cada eleição, obter apoio de outros Estados de peso político relevante cujos interesses econômicos variavam – Rio Grande do Sul, Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco. Era preciso fazer acordos com as diversas facções oligárquicas locais e obter adesões suficientes para garantir a vitória do candidato da vez. |
Na eleição de 1914 para a sucessão do gaúcho Hermes da Fonseca, o mineiro Venceslau Brás derrotou o baiano Rui Barbosa por ampla maioria (91,7%) dos votos e fez valer as expectativas do pacto.
A sucessão de Venceslau Brás foi mais difícil. Oligarquias do Rio Grande do Sul e da Bahia cobiçavam a presidência o que complicou as negociações. Rodrigues Alves, ex-presidente e político com credibilidade, foi um nome de conciliação apresentado por São Paulo para viabilizar um acordo. Minas aceitou de imediato e indicou Delfim Moreira como vice presidente. O Conselheiro, articulador habilidoso, comprometeu-se com um governo plural que incluía além de paulistas e mineiros, nomes indicados pelas oligarquias de Pernambuco, Maranhão e Rio de Janeiro. Gaúchos e baianos foram convidados, declinaram, mas não manifestaram oposição. Em meados de 1917 a candidatura estava consolidada.
Com a morte do presidente eleito a unanimidade da convenção de 1917 que garantiu 99,03% dos votos em 1918 se esvaiu. Gaúchos e baianos ensaiavam a indicação de Borges de Medeiros e Rui Barbosa para a nova sucessão. Em menos de três meses mineiros e paulistas precisavam construir um novo acordo para manter as pretensões de alternância no poder.
A situação era delicada e poderia piorar. Caso a morte fosse publicamente reconhecida como consequência de uma doença antiga, indício de que os paulistas teriam ocultado informações sobre a saúde do Conselheiro, qualquer chance de nova negociação estaria inviabilizada. Por outro lado, aceita a versão de que Rodrigues Alves fora vítima de uma fatalidade, a gripe espanhola, as chances de entendimento poderiam permanecer abertas e viabilizar um novo acordo.
Às vésperas da posse os filhos de Rodrigues Alves declararam aos jornais: “a doença do presidente eleito não é mais do que gripe”. As autoras observam que não afirmaram tratar-se da espanhola, mas as circunstâncias sugeriam esse entendimento e, à época, circularam rumores nesse sentido. Em janeiro de 1919 a gripe já não ameaçava mais São Paulo, mas a vivência recente das mortes causadas pela epidemia, ainda presente no imaginário da população, conferia credibilidade à versão e contribuía para afastar as ameaças aos interesses políticos paulistas.
Schwarez e Starling lembram que o boato é “um meio informal de circulação de ideias e comunicação de massa – aliás um dos mais antigos. (...) a mídia gerada numa conjuntura de desconfiança em que versões inventadas entram em curso porque o dado real está inacessível ou foi falsificado. Vive do indefinido e necessita de uma sociedade disposta a acreditar nele.”
Ao fim o boato prevaleceu, o Conselheiro teve um funeral grandioso, com as qualidades enaltecidas e malfeitos esquecidos como é próprio aos “grandes homens”. E em 28 julho de 1919 Delfim Moreira passou a presidência ao sucessor eleito, o mineiro Epitácio Pessoa que, com 71% dos votos, venceu o já septuagenário baiano Rui Barbosa.
Guido Palmeira, outubro de 2022.
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