O FEITICEIRO E SUA MAGIA


"O Feiticeiro e sua Magia”: em Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural, Cap.9 pg. 193_213, Ed. Tempo Brasileiro, R.J., 1975.


Texto tradicional de antropologia da medicina1 em que Lévi-Straus busca relacionar a eficácia da magia e do feitiço ao contexto cultural do grupo social. O antropólogo sustenta que "... a eficácia da magia implica na crença da magia, que apresenta três aspectos complementares: existe, inicialmente, a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; em seguida, a crença do doente ... no poder do próprio feiticeiro; finalmente, a confiança e as exigências da opinião coletiva ..."

Entre os exemplos elencados para sustentar suas teses o que nos interessa é a história de Quesalid, extraída de uma narrativa indígena recolhida por Franz Boas em língua Kwakiutl (da região de Vancouver - Canadá).2

Quesalid não acreditava nos poderes dos feiticeiros. Com a intenção de descobrir suas fraudes e desmascará-los, conseguiu introduzir-se em um grupo de aprendizes para tornar-se xamã.

Seu aprendizado incluía a arte de fingir o desfalecimento, a simulação de crises nervosas, o aprendizado de cantos mágicos, a técnica para provocar o próprio vômito, noções de auscultação e obstetrícia, o emprego de "sonhadores" encarregados de escutar conversas privadas e relatar ao xamã informações sobre a origem e sintomas dos males sofridos por alguém, e principalmente o uso de um tufo de penugem que, dissimulado num canto da boca, era expectorado ensanguentado (bastava uma pequena mordida na mucosa) no momento oportuno e apresentado solenemente ao doente e à assistência como o corpo patológico expulso em consequência de suas sucções e manipulações.

Ao mesmo tempo que confirmava suas suspeitas, Quesalid começou a se destacar entre os aprendizes. Mesmo antes de completar os quatro anos necessários de exercícios foi chamado para tratar um doente que sonhara ter sido curado por ele. O tratamento foi um sucesso e Quesalid reconhecido como xamã competente. Manteve-se cético, atribuiu seu êxito ao fato de o doente acreditar fervorosamente no sonho que tivera.

Em visita à tribo vizinha dos Koskimo, admirou-se ao assistir um tratamento realizado pelos xamãs locais. No lugar de cuspir a doença sob a forma do tufo sanguinolento eles apenas cuspiam a própria saliva nas mãos e afirmavam que ali estava a doença. O tratamento mostrou-se ineficaz e Quesalid recebeu permissão para experimentar seu método. Ao fim do ritual a doente declarou-se curada.

O caso o deixou intrigado, continuava acreditando que sua técnica era um embuste, mas encontrara outra ainda mais falsa. Ele pelo menos apresentava a doença como algo concreto, seus vizinhos nem isso. Por outro lado seu tratamento tivera resultado enquanto o dos vizinhos falhara.

Os xamãs locais também estavam surpresos. O visitante apresentara a doença, que eles sempre consideraram de natureza espiritual e jamais imaginaram que pudesse se tornar visível na forma de algo material.

Quesalid foi convidado a participar de uma conferência secreta onde lhe expuseram suas crenças na natureza imaterial da doença. Como ele era capaz de fazê-la "aderir à sua mão"? Alegando que estava impedido de ensinar sua técnica antes de completados os quatro anos de aprendizado nosso protagonista furtou-se a fornecer qualquer resposta.

Ao retornar à sua aldeia foi informado de que fora convidado pelo grande xamã de um outro clã a participar de um desafio em que diversos xamãs mediriam a força de seus poderes tratando vários doentes.

Durante o encontro Quesalid constatou que o velho xamã também não mostrava nada ao doente, apenas declarava ter transferido a alma, invisível, da doença para seu barrete de xamã ou para seu chocalho ritual. Repetiu-se o ocorrido quando da visita à tribo dos Koskimo. Quando instado a intervir nos casos julgados difíceis, Quesalid obtinha sucesso com a técnica do tufo ensanguentado.

Desmoralizado e desacreditado entre seu povo o velho xamã, suplicou a Quesalid que lhe revelasse "o que estava colado na palma de tua mão ... era a verdadeira doença ou era somente fabricada?" Quesalid começou por pedir informações sobre os poderes do barrete e do chocalho do colega. O velho xamã lhe revelou seus truques e suas mentiras, confessou que não era capaz de capturar a alma das doenças, simulava o xamanismo pelos proveitos materiais que auferia. Quesalid não disse mais nada. O velho, envergonhado e temido pela comunidade devido às vinganças que poderia perpretar por ter sido ridicularizado, desapareceu na mesma noite.

Quesalid continuou sua carreira desmascarando impostores. Mantinha-se cético em relação à magia, embora com mais parcimônia. Já admitia que poderiam existir xamãs verdadeiros. "Uma vez apenas vi um xamã ... e não pude descobrir se ele era um verdadeiro xamã ou um simulador. Por essa razão apenas eu creio que ele era um xamã."

A narrativa não esclarece como percebia a si próprio (xamã ou embusteiro?), mas deixa claro "que exerce seu ofício com consciência, que é orgulhoso de seus sucessos e que defende calorosamente, contra todas as escolas rivais, a técnica da plumagem ensanguentada, da qual ... zombara tanto no início."

Lévi-Strauss observa que "os elementos daquilo que se poderia denominar de complexo xaminístico ... se organizam em torno de dois pólos (principais), formados um pela experiência íntima do xamã, outro pelo consensus coletivo. Não existe razão para duvidar ... que os feiticeiros ... acreditam em sua missão, e que esta crença não esteja fundada na experiência de estados específicos" (visões, sonhos, impressões corporais ou intuitivas, etc.). E conclui: ”Quesalid não se tornou um grande feiticeiro porque curava seus doentes, ele curava seus doentes porque se tinha tornado um grande feiticeiro."

Guido Palmeira, outubro de 2018.

 

1 Publicado originalmente em Les Temps Modernes, ano IV, nº 41, 1949.

2 "The religion of the Kwakiutl", publicado em 1930 pela Universidade de Columbia.