"O Feiticeiro e sua Magia”: em      Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural, Cap.9 pg. 193_213, Ed. Tempo Brasileiro, R.J., 1975.
Seu aprendizado incluía a  arte de fingir o desfalecimento, a simulação de crises nervosas, o aprendizado  de cantos mágicos, a técnica para provocar o próprio vômito, noções de  auscultação e obstetrícia, o emprego de "sonhadores" encarregados de  escutar conversas privadas e relatar ao xamã informações sobre a origem e  sintomas dos males sofridos por alguém, e principalmente o uso de um tufo de  penugem que, dissimulado num canto da boca, era expectorado ensanguentado (bastava  uma pequena mordida na mucosa) no momento oportuno e apresentado solenemente ao  doente e à assistência como o corpo patológico expulso em consequência de suas  sucções e manipulações.
            
             Ao mesmo  tempo que confirmava suas suspeitas, Quesalid começou a se destacar entre os  aprendizes. Mesmo antes de completar os quatro anos necessários de exercícios  foi chamado para tratar um doente que sonhara ter sido curado por ele. O  tratamento foi um sucesso e Quesalid reconhecido como xamã competente. Manteve-se  cético, atribuiu seu êxito ao fato de o doente acreditar fervorosamente no  sonho que tivera.
            Em  visita à tribo vizinha dos Koskimo, admirou-se ao assistir um tratamento  realizado pelos xamãs locais. No lugar de cuspir a doença sob a forma do tufo  sanguinolento eles apenas cuspiam a própria saliva nas mãos e afirmavam que ali  estava a doença. O tratamento mostrou-se ineficaz e Quesalid recebeu permissão  para experimentar seu método. Ao fim do ritual a doente declarou-se curada.
             O caso o  deixou intrigado, continuava acreditando que sua técnica era um embuste, mas  encontrara outra ainda mais falsa. Ele pelo menos apresentava a doença como  algo concreto, seus vizinhos nem isso. Por outro lado seu tratamento tivera  resultado enquanto o dos vizinhos falhara.
            Os xamãs  locais também estavam surpresos. O visitante apresentara a doença, que eles  sempre consideraram de natureza espiritual e jamais imaginaram que pudesse se  tornar visível na forma de algo material.
            Quesalid  foi convidado a participar de uma conferência secreta onde lhe expuseram suas  crenças na natureza imaterial da doença. Como ele era capaz de fazê-la  "aderir à sua mão"? Alegando que estava impedido de ensinar sua  técnica antes de completados os quatro anos de aprendizado nosso protagonista furtou-se  a fornecer qualquer resposta.
            Ao  retornar à sua aldeia foi informado de que fora convidado pelo grande xamã de  um outro clã a participar de um desafio em que diversos xamãs mediriam a  força de seus poderes tratando vários doentes.
            Durante  o encontro Quesalid constatou que o velho xamã também não mostrava nada ao  doente, apenas declarava ter transferido a alma, invisível, da doença para seu  barrete de xamã ou para seu chocalho ritual. Repetiu-se o ocorrido quando da  visita à tribo dos Koskimo. Quando instado a intervir nos casos julgados difíceis,  Quesalid obtinha sucesso com a técnica do tufo ensanguentado.
            Desmoralizado  e desacreditado entre seu povo o velho xamã, suplicou a Quesalid que lhe revelasse  "o que estava colado na palma de tua mão ... era a verdadeira doença ou  era somente fabricada?" Quesalid começou por pedir informações sobre os  poderes do barrete e do chocalho do colega. O velho xamã lhe revelou seus  truques e suas mentiras, confessou que não era capaz de capturar a alma das  doenças, simulava o xamanismo pelos proveitos materiais que auferia. Quesalid não  disse mais nada. O velho, envergonhado e temido pela comunidade devido às  vinganças que poderia perpretar por ter sido ridicularizado, desapareceu na  mesma noite. 
            Quesalid  continuou sua carreira desmascarando impostores. Mantinha-se cético em relação  à magia, embora com mais parcimônia. Já admitia que poderiam existir xamãs  verdadeiros. "Uma vez apenas vi um xamã ... e não pude descobrir se ele  era um verdadeiro xamã ou um simulador. Por essa razão apenas eu creio que ele  era um xamã."
            A  narrativa não esclarece como percebia a si próprio (xamã ou embusteiro?), mas deixa  claro "que exerce seu ofício com consciência, que é orgulhoso de seus  sucessos e que defende calorosamente, contra todas as escolas rivais, a técnica  da plumagem ensanguentada, da qual ... zombara tanto no início."
            Lévi-Strauss  observa que "os elementos daquilo que se poderia denominar de complexo  xaminístico ... se organizam em torno de dois pólos (principais), formados um  pela experiência íntima do xamã, outro pelo consensus  coletivo. Não existe razão para duvidar ... que os feiticeiros ... acreditam em  sua missão, e que esta crença não esteja fundada na experiência de estados  específicos" (visões, sonhos, impressões corporais ou intuitivas, etc.). E  conclui: ”Quesalid não se tornou um grande feiticeiro porque curava seus  doentes, ele curava seus doentes porque se tinha tornado um grande  feiticeiro."
            Guido Palmeira, outubro de 2018.
            