And the Band Played on - no Brasil, E a vida continua - é um filme feito para a televisão lançado pelo canal HBO em 1993. Dirigido por Roger Spottiswoode, o longa tem roteiro de Arnold Schulman baseado no livro de não-ficção "And the Band Played On: Politics, People, and the AIDS Epidemic", de Randy Shilts. O drama, com duração de 2 horas e 21 minutos, baseia-se em fatos e personagens reais. Algumas cenas foram criadas para atender aos propósitos dramáticos.
As cenas iniciais mostram o Dr. Don Francis na África em 1976, durante a investigação de uma doença desconhecida, altamente contagiosa e mortal, que mais tarde seria atribuída ao vírus Ébola. Em meio à forte chuva, a equipe da OMS, usando roupas e máscaras especiais, chega a uma povoação que parece abandonada. Surge uma criança que os leva até onde está o médico local, morto em meio a vários corpos. São imagens fortes. Ao se aproximar de uma doente agonizante, abandonada em uma casa, Don é atingido por uma golfada de sangue da mulher, que morre em seguida. Os médicos da OMS incineram os corpos.
Abertura pertinente para introduzir o tema principal: um segundo "vírus emergente", responsável por outra das mais sérias epidemias do século XX.
Em maio de 1981 o CDC 1 recebeu informações sobre 5 casos (2 óbitos) de pneumonia provocada pelo fungo Pneumocystis carinii, uma infecção rara, geralmente consequênte a uma imunodeficiência devida a uma outra patologia. O inusitado era que os doentes não tinham nada além da pneumonia. Todos eram homossexuais, de Los Angeles, São Francisco e Nova York. O CDC relatou os casos em seu informe periódico e montou uma equipe para analisar a situação. Don Francis foi integrado ao grupo por ter experiência sobre a Hepatite B entre homossexuais.
As investigações iniciais esclareceram pouco, mas forneceram algumas pistas: confirmou-se que os casos estavam restritos a homossexuais do sexo masculino, que o sistema imunológico era seriamente comprometido, e que, além da pneumonia, havia casos de outra doença rara, o sarcoma de Kaposi.
Em alguns meses os casos passaram de 5 para 152 distribuídos por 15 estados, com mortalidade de 40% que, segundo os médicos que assistiam aos doentes, poderia chegar a 100%. A investigação foi aprofundada orientada pela hipótese de que uma infecção viral, transmitida sexualmente, seria a origem da disfunção do sistema imunológico e abriria caminho para a pneumonia e para o sarcoma.
No fim do ano, com 285 casos e 119 óbitos notificados em 17 estados, um foco entre haitianos, nenhum homossexual, e notícias de 11 casos em bebês, sinais de que a doença não era apenas homossexual, o CDC, mesmo sem ter identificado um agente infeccioso, divulgou um comunicado. A imprensa, que até então não fizera qualquer menção ao problema, repercutiu amplamente informações sobre "duas doenças novas e letais" entre homossexuais e haitianos: a pneumonia e o sarcoma. Alguns conservadores atribuíram a "peste gay" a um castigo divino.
Suspeitas de o que agente poderia ser um retrovírus levaram os investigadores a contatar, em março de 1982, o Dr. Robert Gallo, americano que identificou o HTV, primeiro retrovírus encontrado em humanos. O virologista vaidoso e arrogante, ávido por encontrar uma doença para o "seu vírus", orientou sua equipe a buscar uma relação entre os casos e o HTV.
O problema não estava limitado aos EUA. Ocorriam casos semelhantes na Europa e o virologista Luc Montagnier, do Instituto Pasteur de Paris, buscava identificar um agente etiológico.
Nos EUA um caso em uma mulher viciada em drogas injetáveis e outro em um hemofílico heterossexual que recebera transfusão do fator VIII2 semanas antes de adoecer gravemente, indicavam que o vírus estava no sangue e que os estoques dos bancos de sangue estavam contaminados.
Em janeiro de 1983 os casos nos EUA chegavam a 951, com 640 óbitos. O CDC promoveu uma reunião com representantes de bancos de sangue, de hemofílicos e de homossexuais. Os bancos negaram-se a atender a sugestão de testar o sangue doado, alegando que o custo não se justificava pois não havia sido identificado nenhum agente etiológico específico. Os gays repeliram a idéia de fechar as saunas, símbolo do reconhecimento dos direitos dos homossexuais. A única proposta aprovada foi a de nomear a doença como "síndrome de imunodeficiência adquirida" (AIDS) a fim de mitigar o preconceito contra homossexuais.
Em outubro Monttaigner identificou o HIV, um novo retrovírus diferente do HTV de Gallo e comunicou o achado ao americano, que pediu, e recebeu, amostras. Ao mesmo tempo o virologista francês recebeu amostras não identificadas de doentes e não doentes, enviadas por Don Francis para auxiliar a comprovação etiológica. Gallo passou a considerá-lo "traidor". Os casos chegavam a 2640 com 1092 mortos nos EUA.
Em março de 1984 Gallo anunciou que descobrira o vírus e requereu patentes. No mês seguinte reuniu-se com os franceses. Chegaram a um acordo: fazer uma comunicação conjunta e dividir os louros da descoberta. Encontrado o vírus Don Francis pediu transferência da sede do CDC em Atlanta para São Francisco.
Ainda em 1984, em Paris, Monttaigner é informado de que Gallo patenteara o exame para diagnóstico desenvolvido no Instituto Pasteur. O francês organiza um grupo para decodificar o DNA do vírus empregado no teste que criara e do vírus usado pelo americano. Em fevereiro do ano seguinte a análise de DNA revelou que o vírus apresentado por Gallo era idêntico ao isolado por Monttaigner em outubro de 1983. Nos EUA os casos chegavam a 8408, com 6305 mortos.
Em 1985 as saunas gays de São Francisco foram fechadas. No mesmo ano os bancos começaram a testar o sangue doado. Em 1993 uma pesquisa revelou que das 28.000 pessoas que receberam sangue contaminado 5.879 adquiriram AIDS.
Don Francis deixou o CDC em 1992 para trabalhar no desenvolvimento de uma vacina contra a AIDS. Em dezembro do mesmo ano o escritório de ética em pesquisa do Instituto Nacional de Saúde dos EUA concluiu que o laboratório de Gallo incorrera em conduta imprópria.
As entrevistas com pacientes no início da investigação revelam os dramas pessoais e as reações dos atingidos. Um paciente com sarcoma mostra fotos de quando se exibia em shows de travestis, não compreende o que lhe acontece, mas parece conformado. Outro está revoltado: o número do quarto em que fora internado, 666, seria um prenúncio de sua morte iminente pois os 3 amigos gays, com quem fizera um churrasco nos anos 1980 haviam morrido, um em 6 de outubro de 1981, outro em 6 de fevereiro de 1982 e o terceiro logo após, em 6 de março. Está transtornado e delira.
Don Francis também vive seus dramas. Sente-se frustrado com as dificuldades para solucionar o problema, o que lhe traz lembranças de cenas na África, onde também se defrontara com uma doença enigmática.
Os aspectos políticos, econômicos e sociais, que acompanham as grandes epidemias também estão presentes. A insuficiência crônica de recurso para as investigações. Os esforços de Bill Kraus, ativista gay ligado ao partido democrata, para obter apoio e recursos de um congressista. O discurso de Reagan anunciando o corte orçamentário em todos os departamentos (inclusive o de saúde) exceto no da defesa, que teria dotação maior. A reação da comunidade gay diante do descaso das autoridades e do silêncio da imprensa, alardeando a chegada do "câncer gay" durante a parada de Halooween de 1981. "Se a comunidade gay não fizer barulho você acha que Reagan vai fazer alguma coisa?" comenta um militante.
Apesar de ser uma produção modesta para os padrões do cinema comercial norte-americano, o filme contou com um elenco de estrelas de Hollywood, como Mathew Modine no papel do Dr. Don Francis; Alan Alda como o virologista Robert Gallo; e Ian McKellen interpretando o ativista gay Bill Kraus. Outros artistas consagrados participam em papéis secundários, ou mesmo pontas, certamente em solidariedade à luta por maior atenção à ameaça da epidemia. É o caso de Richard Gere, que faz pequena participação como um conhecido coreógrafo gay que contrai a doença, de Steve Martin que atua como parente de um paciente com AIDS e nomes como Angelica Houston, Lily Tomlin e o músico Phil Collins.
O filme mostra o enfrentamento pessoal e coletivo à epidemia e a disputa por créditos e patentes entre os cientistas. Um bom exemplo do que o sítio pretende abordar: o enfrentamento do homem com a doença e os embates entre os homens na procura de sua causa, fonte de prestígio e fortuna.
Guido Palmeira,com a prestimosa contribuição
do amigo Paulo Baiano,
março de 2019.
www.ohomemeadoenca.com.br
1 Órgão do governo norte americano para o controle de doenças.
2 Responsável pela coagulação sanguínea e ausente nos hemofílicos. |