TROPICALISTAS BAIANOS

Em meados do século XIX um grupo de médicos estrangeiros radicados em Salvador, Otto Wucherer, português de ascendência germânica, John Paterson, escocês e Silva Lima, português, tomou a iniciativa de promover reuniões entre colegas para tratar de "assuntos científicos". Alguns médicos de Salvador, incluindo professores da Faculdade de Medicina da Bahia, aderiram ao grupo.

As reuniões, de caráter informal, aconteciam quinzenalmente à noite, alternadamente na casa de um dos três fundadores seminais. Comentavam artigos publicados em revistas médicas europeias e discutiam casos clínicos de doentes que assistiam. Segundo Silva Lima nos encontros eram tratados assuntos diversos e muitas vezes fortuitos: "não havia estatutos, nem programas, nem fórmulas de discussão, nem relatórios, nem atas; ninguém ali tinha por obrigação fazer ou dizer coisa alguma em tempo, modo e matéria determinados; mas quando, como e o que queria ou podia".

Os membros do grupo compartilhavam uma ideia diversa daquela aceita na Europa, de que os habitantes dos trópicos degeneravam irreversivelmente devido a fatores climáticos e raciais. Entendiam que as doenças eram universais, mas que a umidade e o calor as exacerbavam, assim como as particularizavam. Associavam as doenças tropicais, com que lidavam cotidianamente, à pobreza, à má nutrição, à falta de saneamento, e às más condições de vida dos escravos. Praticavam uma medicina voltada para a pesquisa da etiologia das doenças tropicais que acometiam as populações pobres do país e contribuíram para reformular o modelo até então aceito da nosologia brasileira, questionando o entendimento europeu sobre os problemas de saúde pública no Brasil.

Opunham-se tanto ao determinismo climatológico quanto às etiologias ambientais das doenças dos trópicos. Procuravam identificar agentes etiológicos específicos que justificassem o quadro clínico observado. Tinham por referência os conhecimentos produzidos no âmbito de disciplinas novas como a anatomia patológica, a parasitologia e a microbiologia. Faziam medições a fim de identificar disfunções fisiológicas, analisavam fluidos corporais com auxílio da química e utilizavam o microscópio para examinar tecidos e identificar parasitas.

Além de defender a medicina social nas políticas públicas e a medicina experimental nas pesquisas clínicas, o grupo da Gazeta era politicamente progressista, alinhava-se com o abolicionismo e com as ideias republicanas.

Divergiam tanto do conhecimento médico oficial representado pela Academia Imperial de Medicina quanto do ensino ministrado na Faculdade de Medicina da Bahia e na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que mantinham-se afinados com a tradição médica europeia.

Os encontros começaram em 1865. No ano seguinte o grupo, auto declarado uma "associação de facultativos", lançou a Gazeta Médica da Bahia, com o propósito de:

"concentrar (...) os elementos ativos da classe médica, afim de que, mais unidos e fortificando-se mutuamente, concorram para aumentar-lhe os créditos, e a consideração pública; difundir todos os conhecimentos que a observação própria ou alheia nos possa revelar; acompanhar o progresso da ciência nos países mais cultos; estudar as questões que mais particularmente interessam ao nosso país; e pugnar pela união, dignidade e independência da nossa profissão."
(Gazeta Médica da Bahia, n.1, 10 de julho de 1866)

A Gazeta, meio de divulgação das pesquisas originais do grupo, conhecido um século depois como "Escola Tropicalista Bahiana", foi um dos diversos periódicos publicados por associações médicas autônomas que, a partir da década de 1860, romperam com o monopólio das publicações oficiais da Academia de Medicina: a Gazeta Médica do Rio de Janeiro (1862-64); a Revista Médica do Rio de Janeiro (1873-79); os Archivos de Medicina (1874); o Progresso Médico (1876-80); a União Médica (1881-89); a Gazeta Médica Brazileira (1882) e o Brazil-Médico (1887-1964).

O periodismo médico incrementou do intercâmbio científico e a consolidação de uma pauta de pesquisas voltada principalmente para o conhecimento da matéria médica (fitoterapia), patologia e terapêutica nacionais, estimulando e dirigindo as incipientes iniciativas individuais de pesquisa médica e criando condições para a legitimação dos novos ramos disciplinares reivindicados pelos reformadores do ensino médico.

A Gazeta publicou trabalhos originais sobre diversos males que afligiam a população de escravos, indigentes e pobres: tuberculose, lepra, beribéri e maculo1 entre outros. Foi um importante veículo para o desenvolvimento da parasitologia.

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A polêmica sobre a natureza da "opilação" foi uma das que mais marcou o dissenso entre os tropicalistas e a Academia Imperial de Medicina.

Em 1835 José Jobim, médico renomado, fundador da AIM, relacionara a "opilação" entre os males que mais afligiam os escravos e indigentes do Rio de Janeiro. Postulou tratar-se de uma doença específica, descreveu seus sintomas, patogenia, evolução clínica, e indicou a terapêutica adequada. Seus estudos fundamentavam-se na topografia médica2, na estatística, na observação clínica, na anatomia patológica e no exame dos componentes do sangue. Concluiu que a disfunção própria da "opilação" era a uma intensa anemia que creditou à "inferioridade ou pobreza do sangue, própria dos países que ficam entre os trópicos"3. Os distúrbios gastrointestinais seriam consequência da "perversão da hematose". Denominou-a "hipoemia intertropical". Suas opiniões tiveram grande aceitação nos meios médicos nacionais e estrangeiros.

O "opilado"

Em 1853 Theodor Bilharz, e Wilhelm Griesinger, relacionaram a anemia perniciosa do Egito ao Anchylostomum duodenale, verme descrito pelo italiano Angelo Dubini em 1838. Wucherer conhecia o trabalho de Griesinger. Encontrou ancilóstomas firmemente aderidos ao duodeno em necropsias de cinco doentes graves de hipoemia. Como os vermes não eram encontrados em necropsias de diversos outros pacientes anêmicos, concluiu que "não é a anemia, por si só, que parece determinar a existência dos anchylostomos."

Em setembro de 1866 a Gazeta publicou um artigo em que Wucherer afirmava não poder "haver dúvida de que uma grande cópia de vermes, que vivem de sangue, e causam numerosíssimas, ainda que pequenas, hemorragias, sejam capazes de produzir, dentro de certo tempo, uma excessiva anemia, como a que se encontra nos casos de hipoemia tropical, e havendo ausência de outras causas a que a anemia possa ser atribuída, forçoso é concluir que a causa está nos anchylostomos."

(GMB_Nº6_25 set1866)

Ancilóstoma duodenali

O Dr. Júlio de Moura admirava-se com o fato de "pessoas estranhas à arte" (médica) recuperarem opilados utilizando o leite de Gameleira, remédio tido como "catártico"4, a princípio contra indicado em casos de anemia severa. Conhecia o trabalho de Wucherer e ao encontrar ancilóstomas durante a necrópsia de um paciente de hipoemia convenceu-se da etiologia parasitária. Deduziu que os benefícios do leite de Gameleira deviam-se a alguma ação anti-helmíntica. Em 1867 enviou uma "memória" à AIM na qual, além de aderir às opiniões de Wucherer, propunha o "emprego racional" do leite de Gameleira ao contrário do uso "vulgo", que não considerava dosagem nem o estado do doente.

Peçanha da Silva, relator da matéria, assentou que caso o ancilóstoma fosse a origem da anemia o leite de Gameleira seria indicado, caso se considerasse a opilação consequência de uma disfunção sanguínea, os vermes seriam mera complicação e o remédio contra indicado. Ao fim do relatório declarou que em sua opinião a hipoemia devia-se "a uma alteração primitiva do sangue", os vermes seriam consequência da "alteração dos sucos digestivos", portanto uma complicação, não a origem da doença. Afirmou que os dados existentes não eram conclusivos, que a questão permanecia aberta e não poderia, "por este estudo tão rápido", aceitar as opiniões de Júlio de Moura.

Em agosto do mesmo ano a AIM reuniu-se para responder à questão proposta pelo relator: Qual o papel do ancilóstoma na hipoemia? Os acadêmicos foram unânimes em considerar as conclusões de Júlio de Moura precipitadas e aceitar a sugestão de Antônio Felix Martins, de que à falta de "fatos suficientes para a cabal solução de uma questão de tanta monta" a Academia não estaria habilitada a discutir a matéria.

Apesar do próprio Jobim ter aceito os argumentos de Wucherer, em setembro os acadêmicos Torres Homem, Ribeiro d'Almeida e Felix Martins reiteraram, em declarações individuais, a opinião então corrente de que o ancilóstoma não deveria ser considerado causa da hipoemia intertropical. Os vermes se originariam, por geração espontânea5, em consequência das alterações dos sucos digestivos provocadas pela intensa anemia, seriam uma complicação e não causa da doença.

A resposta de Wucherer foi publicada na Gazeta em Janeiro de 1868. Declarou-se surpreso uma vez que os "Ilustres membros da Academia" não teriam declarado "os fatos que os conduziram a formar este juízo compreensivo". E acrescentou: "questões sobre causa e efeito não se decidem por opiniões ou por votos, e sim pela apreciação dos fatos"

Em 1878, cinco anos após a morte de Wucherer, pesquisadores italianos demonstraram que o diagnóstico da doença poderia ser facilmente estabelecido pela presença de ovos do ancilóstoma nas fezes dos pacientes. Dois anos depois o ancilóstoma estava plenamente reconhecido como causa da "opilação", que passou a ser denominada ancilostomose.

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Em 1866, em meio à polemica sobre a "opilação", a pedido de Griesinger, Wucherer examinou pacientes hematúricos para confirmar, no Brasil, a presença do Distomum haematobium (hoje Schistosoma haematobium), verme identificado no Cairo por Theodor Bilharz em 1851 e apontado como agente etiológico da hemato-chyluria, (hoje esquistossomose urinária6 ). Ao observar os coágulos sanguíneos na urina dos pacientes Wucherer encontrou embriões de uma Filária desconhecida.

Seis anos depois Timothy Lewis (1841-1886) identificou a mesma Filária no sangue de hematúricos, e a denominou Filaria sanguinis hominis. No ano seguinte identificou a Filária na linfa extraída de tumores elefantoides e levantou a hipótese da identidade entre a hemato-chyluria e a elefantíase. O verme adulto foi identificado três anos depois num abcesso linfático examinado por Joseph Bancroft (1834-1894). Entre 1877 e 1878 Patrick Manson identificou o mosquito Culex como vetor da doença e desvendou o ciclo evolutivo da Filária, hoje identificada como Wuchereria bancroft.

Elefantíase

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A formação médica seguia a tradição europeia baseada em teorias médico-filosóficas do século XVIII. As aulas ministradas nas faculdades de Salvador e do Rio eram discursivas, enfatizavam o determinismo racial e climatológico.

Antonio Pacífico Pereira, professor da Faculdade de Medicina da Bahia, fundador da Gazeta e estudioso da educação médica, valorizava o ensino prático. Criticou enfaticamente nas páginas da Gazeta o ensino retórico praticado na faculdade onde ensinava:

"É certo que contamos em nossas Faculdades professores muito notáveis, mas é forçoso confessar que, quer pela sua organização e pelos elementos de que dispõem, quer pelo sistema oficialmente adotado e determinado por lei, o ensino é quase uma formalidade, a prática uma ilusão. Os professores (sem laboratórios e instrumentos indispensáveis) limitam-se, mal grado, a fazer um discurso sobre a matéria ... e a lei obriga, por um despotismo atroz, os estudantes a ouvirem durante uma hora aquilo que podem, com menor sacrifício, ler em seus gabinetes." (GMB, jan 1877)

Dirigiu a Gazeta Medica da Bahia, de janeiro de 1868 a julho de 1870, e de janeiro de 1876 a junho de 1921. A partir do início dos anos 1880 publicou diversos artigos com críticas ao ensino médico e sugestões para sua reformulação, incluindo a proposta detalhada de um "Plano de reorganização para as Faculdades de Medicina do Império", onde destacava a importância das atividades clinicas em hospitais e ambulatórios, além da necessidade de instalação de diversos laboratórios.

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Os tropicalistas baianos diluíram-se em meados da década de 1880. Ficou a Gazeta. A publicação começou a circular, quinzenalmente, em julho de 1866. O Prof. Virgílio Clímaco Damásio (1838-1913), diplomado na FMB em 1859 e professor da Seção de Ciências Acessórias foi o primeiro editor, substituído em janeiro de 1868 por Pacífico Pereira, que ficou na função até meados de 1870, quando a revista foi suspensa.

A Gazeta voltou a circular em agosto de 1871 sob direção do Prof. Demétrio Tourinho (1826-1888), Lente de Patologia Interna da FMB, e novamente interrompida em julho de 1874. Retomada dois anos depois, sob nova direção de Pacífico Pereira, deixou de ser publicada em 1920 em razão de seu adoecimento. Segundo o próprio Pacífico Pereira, Silva Lima foi o mais versátil colaborador e o principal redator da Gazeta Médica da Bahia, de 1866 até sua morte em 1910.

Em 1922, o Prof. Aristides Novis, que fora redator principal de 1915 a 1919, assumiu a direção e conseguiu manter a publicação regular até 1934, quando a revista praticamente desapareceu. Seus descendentes transferiram os direitos do periódico à Faculdade de Medicina da Bahia. Hoje a Gazeta Médica da Bahia é a revista oficial da Faculdade.

Guido Palmeira, janeiro de 2021.


Bibliografia de interesse

Benchimol, J. L. - A instituição da microbiologia e a história da saúde pública no Brasil, Ciência & Saúde Coletiva, 5(2):265-292, 2000

Edler, Flávo Coelho - Opilação, hipoemia ou ancilostomíase?, VARIA HISTORIA, nº 32, Julho, 2004.

Edler, F. C. - A Escola Tropicalista Baiana: um mito de origem da Medicina Tropical no Brasil. História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. 9(2):357-85, maio-ago. 2002.

OBS: A coleção de exemplares da Gazeta Médica da Bahia está toda digitalizada e disponível em: http://www.gmbahia.ufba.br/index.php/gmbahia/index.


NOTAS

1 Diarréia com inflamação retal e relaxamento do esfíncter anal que acometia os escravos novos.

2 A topografia médica incluía a descrição do perfil climatológico correlacionando topografia e meteorologia .

3 Observe-se que não estavam envolvidos fatores miasmáticos, o que se buscava eram as relações entre meteorologia e lesões anatomopatológicas.

4 Remédio enérgico, que empobrece o sangue e pode causar diarréia.

5 À época, a possibilidade da geração espontânea dos entozoários era compartilhada por várias instituições médicas. Apenas os helmintologistas que além de dominarem o saber anatomoclínico tinham conhecimentos de embriologia, ecologia e parasitologia de helmintos a refutavam.

6 Doença provocada pelo Schistosoma haematobium, endêmica na África e Oriente Médio. Responsável por lesões graves do aparelho urogenital e caracterizada por hematúria.