CURIOSIDADE NEOLÍTICA

Durante o século XIX foram encontrados, por toda a Europa, diversos crânios trepanados datados do fim do período neolítico, vários com sinais de cicatrização óssea, indício de que os indivíduos sobreviveram à intervenção.
O neolítico corresponde ao final da idade da pedra (entre 10.000 e 5.000 a.c.), quando os homens deixaram de ser caçadores e coletores nômades e se fixaram em pequenas aldeias. Desenvolveram instrumentos de pedra polida sofisticados, os rudimentos da cerâmica (argila cozida) da tecelagem (linho e lã), começaram a cultivar cereais e a domesticar animais.

Artefatos do período neolítico.

Crânio do período Neolítico trepanado com sílex, com sinais de cicatrização. Museu de História Natural de Lausanne, Suíça.

A trepanação consiste na abertura de um orifício na calota craniana. Foi praticada nas antigas civilizações do Egito e do vale do Indo, na Mesopotâmia, na Grécia clássica, no império romano e na renascença, com o objetivo de tratar a epilepsia ou remover fragmentos ósseos consequentes a traumatismos para aliviar o acúmulo de fluidos intracranianos.

Em meados dos 1800s alguns cirurgiões dedicaram-se ao estudo de crânios trepanados, não só os encontrados na Europa como os de múmias pré-colombianas encontrados no Peru.

Paul Broca, professor de clínica cirúrgica e presidente da Sociedade de Cirurgia de Paris, foi um dos principais responsáveis por chamar a atenção da comunidade científica para os crânios neolíticos trepanados em comunicação, de 1876, na Academia de Ciências francesa. Levantou a hipótese de que as trepanações seriam praticadas para permitir a evacuação de demônios alojados no cérebro, segundo a crença vigente, os responsáveis pelas convulsões.

Rodelas de crânios humanos trepanados foram encontradas em escavações de dólmens1 na região francesa de Lozére. Seriam amuletos, objetos mágicos. Tese que fortalecia a idéia de que as trepanações, tanto as realizadas em sujeitos vivos como após a morte2, envolviam elementos culturais de caráter sobrenatural.

Dólmens europeus do período neolítico.

Ao mesmo tempo havia quem considerasse que as trepanações neolíticas tinham intenções cirúrgicas empíricas, destinadas a diminuir a pressão intracraniana que provocava a epilepsia, não seriam apenas simples rituais.

Broca morreu em 1880. Sete anos depois Victor Horsley, conceituado neurocirurgião inglês, após examinar diversos crânios trepanados, concluiu que cirurgiões do neolítico perceberam empiricamente que as trepanações realizadas para remover fragmentos de ossos quebrados poderiam curar ou controlar a epilepsia pós traumática. Por outro lado admitia que as "rodelas" neolíticas encontradas em Lozére seriam amuletos mágicos. Sua tese teve certa aceitação por algum tempo.

Antropólogos eminentes viam as teses de Horsley com ceticismo, defendiam que a crença primitiva na possessão por espíritos e na cura mágica não podia ser ignorada. Sir Francis Galton, presidente do Instituto Antropológico da Grã-Bretanha e Irlanda, ponderou que a tese de Horsley implicava em creditar uma inteligência aos selvagens que não as normalmente observadas. "Eles eram capazes de elaborar explicações para a realidade de modo implacável e inteligente, seguindo suas fantasias e superstições mais do que a experiência”.

Parto do princípio de que a atividade curativa é inerente à cultura e sempre está impregnada dela. Evidências empíricas sempre tendem a confirmar  as idéias hegemônicas de cada época a respeito da origem do "Mal".

A constatação de que a retirada de fragmentos ósseos de um traumatismo no crânio atenua ou mesmo evita as convulsões pode justificar tanto a crença na evacuação de espíritos quanto a explicação de que decorre da diminuição da pressão intracraniana. Interessante observar que em ambos os casos trata-se de um procedimento que visa um "esvaziamento". Por outro lado nem todas as trepanações destinavam-se à retirada de fragmentos ósseos consequêntes a traumatismos.

Os crânios neolíticos trepanados testemunham que desde sempre os homens foram fustigados por doenças, circunstância inexorável à vida, e lidaram com elas com todos os recursos disponíveis em cada época, inclusive os mais radicais.

 

Guido Palmeira, setembro de 2019.

NOTAS

1 monumentos megalíticos tumulares coletivos construídos na Europa entre o V e o III milênios a.c

2 É difícil distinguir as trepanações que resultaram em morte das realizadas após a morte.