CIRURGIÃO DO OURO

No fim do século XVII bandeirantes saídos de São Paulo descobriram ouro nos rios das serras de Minas Gerais1. A notícia atraiu um intenso contingente de imigrantes tanto os estabelecidos no litoral da colônia quanto de Portugal.

O grande afluxo de pessoas a uma região até então povoada por colonos esparsos com produção dedicada basicamente à própria subsistência provocou graves problemas de abastecimento. Nos primeiros anos de ocupação houve períodos em que a fome tirou a vida de muitos aventureiros. Aos poucos os problemas foram superados. Fazendas se estabeleceram à beira dos caminhos e comerciantes de várias partes da colônia passaram a abastecer os povoados recém criados, onde a circulação de metais preciosos crescia e as mercadorias alcançavam preços elevados. 

Em 1711 os arraiais fundados pelos bandeirantes no fim do século anterior foram formalmente promovidos a Vilas, embora continuassem pequenos ajuntamentos de construções de barro e palha2: Vila de Nossa Senhora do Ribeirão do Carmo (hoje Mariana), Vila Rica de Ouro Preto e Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. Dois anos depois o Arraial Novo do Rio das Mortes, nascido de uma "passagem"3 estabelecida pela Coroa em 1704 originou à Vila de São João Del Rei. 

O português Luis Gomes Ferreira (*1686 †1764), licenciado cirurgião em 1705, desembarcou na Bahia em 1708 atraído pelo ouro. Permaneceu no Brasil por 23 anos. Em 1735 publicou em Lisboa o ”Erário Mineral", composto por um prólogo ao leitor, um curto proêmio e doze tratados, onde relata sua experiência na colônia. O livro é rico em informações sobre as doenças e a medicina praticada no Brasil setecentista.

Sua primeira tentativa de chegar às minas, pelo Caminho do São Francisco, foi interrompida por uma "febre maligna" que o obrigou a convalescer por cinco meses em Barra do Rio das Velhas, onde o rio deságua no São Francisco. Retornou a Salvador e se estabeleceu como cirurgião. Na segunda tentativa, em 1710, evitou o São Francisco, ao chegar na Tranqueira seguiu à esquerda, pelo Caminho do sertão que o levou a Sabará, onde se instalou no ano seguinte, quando o arraial foi elevado a vila.

A falta de médicos na região e os ganhos como cirurgião o incentivaram a manter-se na profissão. A maior parte de seus clientes eram escravos, enviados pelos senhores para serem tratados dos males que os inutilizavam para o trabalho, quando não os matavam. Logo Gomes Ferreira se deu conta de que os anos de aprendizado no Hospital Real de Todos os Santos em Lisboa tinham pouca serventia para a prática nas minas. O clima era outro, as doenças não eram as mesmas e não eram os mesmos os medicamentos disponíveis.

Em Sabará inúmeros escravos morriam, causando grandes prejuízos aos senhores. Sem poder remediar-los Gomes Ferreira lamentava-se "pelo pouco crédito que adquiria". Constatou que as "pontadas pleuríticas", "o flagelo que mais tem destroçado os mineiros destas minas", também era o que "mais cuidado tem dado aos professores, sem nunca poderem achar o modo certo em sua cura porque, pela maior parte, sangrando-se morrem, com cordiais4 morrem, purgando-se com vomitórios morrem - de tal modo que ficam os cirurgiões e médicos admirados, vendo morrer os doentes sem remédio".5

Ao perceber que a medicina aprendida na Europa não se adequava ao ofício nas minas incorporou as práticas de cura locais. Tornou-se amigo do húngaro João da Rosa, cirurgião, herbolário e farmacêutico "antigo no clima", com quem aprendeu a reconhecer as doenças dos moradores e a utilizar os recursos terapêuticos tradicionais da flora brasileira, muitos de origem indígena, apropriados pelos bandeirantes, outros de eficácia comprovada devido aos bons resultados obtidos no uso costumeiro.

Considerava errados os que "são (tão) atados aos conselhos e regras dos antigos, que nem ao que estão vendo com os próprios olhos querem dar crédito". A seu ver os dogmas da tradição humoral não podiam servir de argumento para desdenhar a realidade empírica "mais fé deve se dar à experiência que à razão".

"Quem haverá que não se admire vendo sarar feridas horríveis (...) deitando somente os pós simpáticos (...) sobre o instrumento que feriu (...) Quem haverá que não tenha por mentira o dizer-se que muitas tosses se curam com laranjas azedas?! Se houvéssemos de dar mais crédito à razão que à experiência, mais razão era que os pós simpáticos se deitassem sobre a ferida (...) mais conforme à razão era que a tosse se curasse com lambedores e coisas doces (...) Contudo, ainda que essas coisas pareçam incríveis e contra a razão, a experiência mostra que todas são verdadeiras".

Três anos após sua chegada a Sabará foi chamado para atender um escravo do ouvidor-geral da Vila. Encontrou o doente "com uma pontada da parte esquerda que lhe fazia impedimento na respiração, tinha os pulsos mui delgados e submersos, ou sumidos. Mandei que tomasse sua ajuda purgativa, e na pontada lhe pusessem logo o emplastro de erva-de-santa-maria”. Anoitecia, disse ao ouvidor que no dia seguinte voltaria a ver o doente para lhe aplicar o remédio que parecesse mais acertado. Ao procurá-lo logo pela manhã, "dei com ele morto e já frio". Com anuência do ouvidor e a ajuda de João da Rosa fez uma "anatomia" para identificar "a causa da morte tão repentina". A incisão de um intestino revelou grande quantidade de lombrigas, "como sardinhas em tigela". Concluíram que elas "o tinham sufocado".

Gomes Ferreira aprimorou seus tratamentos e angariou fama de bom curador pela capacidade de absorver a farmacopéia e a experiência dos práticos locais. Desde a "anatomia" no escravo do ouvidor passou a estar sempre atento às lombrigas "em todas as curas que fazia, misturando sempre nas purgas remédios contra estes adversários inimigos".

Anos depois, em Vila Rica de Ouro Preto, examinou o escravo de um alferes que também apresentava forte pontada do lado esquerdo, dificuldade para respirar e "pulsos submersos". Preocupado o alferes perguntava com insistência "se o havia de mandar sangrar ou se se havia de purgar". Conseguiu persuadi-lo de que "nem se havia de sangrar, nem purgar, e só que havia de tomar remédios contra lombrigas". Mandou buscar em sua casa o "remédio contra lombrigas de fedegoso", um "segredo” seu, que logo ministrou ao doente; na pontada aplicou o emplastro de erva-de-santa-maria. Na manhã seguinte o doente sentia-se melhor. Deu-lhe o remédio novamente e mandou acrescentar "fel de boi" ao emplastro. "No mesmo dia, começou a lançar por baixo e pela boca algumas lombrigas. Continuou a tomar dois remédios cada dia, ia lançando cada vez mais lombrigas e as melhoras em aumento, ao fim de três dias ficou de todo livre da pontada e com a respiração desimpedida".

Assim como muitos físicos, cirurgiões e boticários, Gomes Ferreira manteve secretas várias de suas fórmulas graças às quais, dizia, "sempre tive grande conceito". Ao contrário dos remédios manipulados em boticas para um paciente específico, os remédios de segredo, muito populares à época tanto na colônia como no reino, eram fabricados "por atacado" pelo próprio idealizador.

Eram anunciados em folhetos afixados e distribuídos nas ruas, que alardeavam suas qualidades com depoimentos dos que o experimentaram com sucesso, e indicavam o local para aquisição, geralmente a casa do fabricante. Tinham nomes de fantasia pelo qual ficavam conhecidos. Muitos traziam "bulas", o que ensejava a automedicação.

Os segredos eram um trunfo de seus detentores pois lhes conferia o mérito da cura, lhes proporcionavam fama e ampliavam sua clientela. Os que eram curados ficavam gratos e tornavam-se amigos. Tratava-se de importante instrumento de sociabilidade e no caso de pessoas poderosas e influentes um importante meio de projeção social e obtenção de benesses.

Gomes Ferreira atribuía as doenças ao clima frio e úmido, à alimentação inadequada e às precárias condições de moradia dos escravos, além do trabalho nas minas, que os mantinham longas horas enfurnados no sub-solo ou metidos em valas inundadas de água extremamente fria. Sobrevinham as pontadas, a "cangalha", as crises reumáticas, os resfriamentos e as febres com catarros. Também eram frequentes "as chagas nas pernas dos pretos, por andarem com elas escaneladas ou escalavradas".

Ele próprio foi vítima de erisipela em uma perna por ter passado muito tempo minerando dentro do rio que passava pela fazenda que comprou na Vila de Nossa Senhora do Carmo em 1718.

A cangalha, "convulsão dos nervos", ou "convulsão por causa fria", doença considerada difícil de curar, provocava um espasmo nos dedos das mãos "que ninguém por mais força que tenha, lhos abre". Havia casos em que "pegando uma pessoa pelos pés, outra pela cabeça, quase (ia) o corpo direto, sem fazer muito arco no meio". Para a cura Ferreira indica xaropes de resinas de batatas e banhos com água bem quente, embora o melhor remédio fosse tirá-los da ocupação de mineração.

O trabalho nas minas também provocava acidentes. Em 1711 treze escravos do Capitão-mor foram soterrados por um deslizamento de terra e pedras numa lavra em Sabará. Quatro foram retirados mortos, os demais tinham braços e pernas quebrados, uns com "as costelas metidas com as pontas para dentro, outros com os ossos da fúrcula do pescoço6 feitos em miúdos pedaços, um com as vértebras do espinhaço deslocadas em duas partes, outro lançando sangue pela boca, narizes, ouvidos e umas pingas por um olho".

Quatro de seus próprios escravos foram soterrados em 1714 enquanto cortavam uma brecha num morro em Sabará, "ficando tão cobertos de terra e pedras que tinham em cima de si mais altura de uma pessoa". Logo socorridos pelos demais foram retirados "muito pisados das pedras e terra".

Poucos anos depois, quando morava em Vila Rica de Ouro Preto, "um grande pedaço do teto de uma mina subterrânea" caiu em cima de um escravo. Chamado para vê-lo Gomes Ferreira o encontrou com "uma grande contusão no ombro, e tão acérrimas dores e inchação tão grande que o não deixavam sossegar".

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Na Europa setecentista os profissionais da cura formalmente certificados incluíam os médicos, chamados físicos, os cirurgiões, os boticários, as parteiras e os barbeiros sangradores.

Havia uma clara distinção entre físicos e cirurgiões, herança da tradição medieval de preconceito em relação às artes mecânicas e ao trabalho manual. Os  físicos tinham formação erudita nas universidades durante seis anos. Estudavam a tradição humoral de Hipócrates e Galeno impregnada da filosofia escolástica sistematizada por Tomás de Aquino no século XIII e mantinham estreitas ligações com a igreja. Não executavam nenhuma ação manual. A manipulação dos corpos, o contato com o sangue, humores e secreções comprometeria sua reputação. Prescindiam da destreza técnica, à notoriedade bastavam a erudição, a escolástica e a eloquência. Limitavam-se a fazer o diagnóstico, indicar o tratamento e prescrever remédios.

Os fundamentos da medicina galênica tradicional também eram ensinados aos cirurgiões, mas seu aprendizado, de três anos, estava mais voltado para a prática. Eram habilitados a praticar toda a cirurgia da época, tratavam qualquer tipo de ferimento ou lesão, faziam amputações, cuidavam das fraturas, das ulcerações, dos abscessos, além de sangrar, lancetar, aplicar ventosas e arrancar dentes.

Não havia formação institucional para o desempenho da atividade de barbeiro. O conhecimento era transmitido oralmente e as habilidades desenvolvidas na prática. Embora leigos, muitos analfabetos, podiam obter "cartas de confirmação de sangria" concedidas pelo cirurgião-mor do reino ou por seu representante na colônia.

Eram todos homens, mulatos ou negros, alguns livres outros escravos. Seu trabalho restringia-se às sangrias, às sarjas, à aplicação de sanguessugas e ventosas, além da extração de dentes. Nos locais onde não houvesse cirurgião, podiam receber licença para realizar cirurgias. Alguns vendiam remédios e poções, talismãs curativos e amuletos para prevenir doenças. Sua clientela compreendia essencialmente os mais pobres e os escravos.

Como mostra o relato de Gomes Ferreira, no Brasil, ante a falta de físicos, os cirurgiões não só sangravam e tratavam lesões, ulcerações e tumores como faziam observações clínicas, cuidavam de febres e outras doenças, inventavam, produziam e receitavam medicamentos, mesmo sem licença para tal.

Além da escassez de licenciados a medicina oficial tinha pouca credibilidade na colônia. Frequentemente as práticas populares tradicionais mostravam melhores resultados. Uma quadrinha popular advertia: "Quem quiser ter vida longa / fuja sempre que puder / de médico e boticário / melão, pepino e mulher". O bispo do Pará, frei Caetano Brandão, dizia ser "melhor tratar-se uma pessoa com um tapuia do sertão, que observa com maior desembaraço instinto, do que um médico desses vindo de Lisboa." Nas minas a população recorria a um amplo universo de curadores ilegais, praticantes da medicina popular: curandeiros, rezadores, mezinheiros , bruxos, mandingueiros, pajés, etc..

Em Portugal, a prática médica era fortemente controlada pela igreja. Os jesuítas eram os principais responsáveis pelo cuidado dos doentes e por assegurar que o ensino médico seguisse fielmente a ortodoxia escolástica. O sagrado era a razão primeira tanto do adoecimento quanto da cura. O título XL das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, é representativo: "Como os médicos e cirurgiões devem admoestar aos doentes que se confessem e comunguem".

Os tratados médicos portugueses estavam repletos de superstições antigas, ligadas à feitiçaria e à astrologia. Para o saber médico oficial era perfeitamente admissível que as doenças decorressem do castigo divino, que feitiços pudessem causar enfermidades ou que cometas trouxessem epidemias. Medicina, religião, superstição e magia compunham um emaranhado indesatável.

A idéia de que o "reino dos céus" interferia diretamente na vida das pessoas conformava a mentalidade da época. A igreja promovia curas por meio de orações, relíquias, água benta, amuletos, hóstias, etc., manipulados como verdadeiros instrumentos mágicos. A distinção entre religião e magia era muito tênue.

A interação entre o sobrenatural e o natural não era exclusividade dos europeus. Tanto as cosmogonias africanas quanto a dos indígenas brasileiros reconheciam a existência de dois mundos, ''este mundo" e o "outro mundo", e admitiam que certas pessoas, sacerdotes, pajés, profetas, bruxos, feiticeiros etc., eram capazes de fazer com que seres do outro mundo agissem sobre acontecimentos neste mundo. Se não tinham a noção de inferno, podiam reconhecer a presença de entidades maléficas (demônios) em certas manifestações de alguns espíritos.

A crença de que pessoas podiam manipular forças sobrenaturais para provocar doenças ou mesmo a morte era portanto compartilhada por europeus, africanos e gentios e estava presente em todos os extratos e grupos sociais.

A igreja buscava monopolizar o contato com o sobrenatural e reprimia os praticantes de curas mágicas heterodoxas, principalmente os que curavam doenças de feitiço, a maioria negros, escravos ou forros, temidos por pelo poder de comunicar-se com o outro mundo. Brás Luís de Abreu, médico e familiar do Santo Ofício, considerava "médicos feiticeiros" tanto os produtores de malefícios (doenças de feitiço) como os curadores ilegais, mezinheiros, adivinhos, mandingueiros e benzedores, todos identificados como "sequazes do Inimigo de Cristo".

Os praticantes da medicina oficial também tratavam pacientes vitimados por feitiços. Uns "magros e secos como esqueletos, sem terem febre, nem frio, nem dor, nem fome, nem desgosto, nem causa alguma manifesta donde lhes pudesse vir a tal magreza". Outros "que sendo discretos e de boa índole, passaram de repente a serem tolos e furiosos, ou fugiram da companhia das gentes, andando uns sempre rindo, outros chorando sempre". O "ligamento" (impotência sexual) também era frequentemente atribuído à feitiçaria.

Muitos casos eram tratados com infusões de ervas como o heléboro negro, a borragem ou a erva cidreira. Em outros o tratamento adquiria caracteres tipicamente mágicos.

Apoiado nas indicações do renomado físico João Curvo Semedo, "médico da família real de Portugal, da nobreza e das gentes humildes de Lisboa", Gomes Ferreira recomendava que: aos "moços robustos e mui potentes (que) casando-se se acharão incapazes de consumar o matrimônio, que se defumem as suas partes vergonhosas com os dentes de uma caveira postos em brasa e ficarão desligados". Ou que os "enfeitiçados ou endemoninhados que viam fantasmas em figuras de cavalos, elefantes, perus, serpentes e dragões" deviam usar pulseiras e colares de contas de "alambre (âmbar) branco".

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Desde sua chegada a Sabará, em 1711, Gomes Ferreira circulou pelas vilas mineiras. Morou em Vila Rica de 1716 até 1718, quando comprou uma fazenda na Vila de Nossa Senhora do Carmo onde se estabeleceu por seis anos. Em 1724 retornou à Vila Rica, mas manteve a fazenda, para onde transferiu-se novamente em 1729. No ano seguinte voltou a Sabará.

Nos lugares por onde esteve, além de dedicar-se à mineração, manteve a atividade de cirurgião, tratando ferimentos, chagas e quebraduras, e curando doenças de diversas naturezas, padecidas por escravos, moradores e autoridades.

Durante os anos 1720, embora as lavras continuassem a produzir (o ouro só escassearia no fim do século), problemas econômicos agravados pelo aumento de impostos, impunham dificuldades à mineração.

A partir de 1719 a arrecadação do imposto cobrado nas "passagens" sobre a "entrada”, de escravos, gado e cargas, foi transferida das vilas para a Fazenda Real. A mudança inflacionou o preço das mercadorias e dos escravos. Mineradores compravam escravos dos mercadores a crédito e os juros os deixavam reféns de dívidas, sujeitos a vê-los confiscados pelos credores.

No mesmo ano D. João V mandou instalar casas de fundição em Vila Rica, São João Del Rei e Sabará, para a cobrança do quinto diretamente sobre o ouro em pó a ser entregue nessas oficinas. Entre 1724 e 1725 começou a funcionar a Casa de Fundição de Vila Rica, onde todo ouro em pó deveria ser entregue para ser fundido em barras ou cunhado em moedas, com a cobrança do respectivo quinto Real. O ouro em pó, recolhido diretamente nos aluviões, não podia mais ser utilizado em transações comerciais. Medidas que também implicavam em aumento da carga tributária dos mineradores.

Em 1731 Gomes Ferreira decidiu retornar a Portugal, ia mais rico do que quando chegou. Além do ouro acumulado, certamente vendeu o que amealhara nos 20 anos vividos nas vilas mineiras: a fazenda, a casa de moradia em Vila Rica, escravos, lavras, e animais de criação. No fim do ano estava em Salvador, aguardando a frota para a travessia. Em fevereiro de 1732 chegou à Lisboa.

O conhecimento adquirido nas Minas não se adequava às doenças de Portugal e seus "segredos" não atrairiam mais clientes. Assim dedicou-se a escrever "observações e não autoridades" sobre o que aprendera a respeito das doenças e dos remédios da colônia, e revelar seus "segredos”.

No Prólogo ao leitor trata de rebater possíveis críticos. Adverte aos que entenderem que lhe falta "galanteria no dizer", que escreve "para todos se aproveitarem nas suas necessidades" e que os "ignorantes da medicina e da cirurgia" precisam ser "ensinados com o modo ordinário com que se explica o povo". Lembra Santo Agostinho, "que antes queria ser censurado dos gramáticos que mal entendido dos rústicos".

Às censuras por "escrever da Medicina, sendo professor da Cirurgia, respondo que nas necessidades da saúde os Cirurgiões suprem (a) falta dos senhores Médicos, em tantas, e tão remotas partes, onde padecem os povos grandes necessidades. Para remediar estas, e dar luz aos principiantes nesta região, sai a público este Erário Mineral".  

Guido Palmeira, dezembro de 2018.


Bibliografia de interesse

Erário Mineral / Luís Gomes Ferreira; org. Júnia Ferreira Furtado - Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002.

Furtado, Júnia Ferreira - Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, Vol. 41, jul./dez 2005.

Miranda, Carlos Alberto da Cunha - A Arte de Curar Nos Tempos da Colônia. Ed. UFPE, Recife, 2011.

Nogueira, André Luis Lima - Entre Cirurgiões Tambores e Ervas. Ed. Garamond, R.J.,2016.


NOTAS

1 Desde o século XVI a região que hoje corresponde aos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, compunha a Repartição Sul, uma das grandes circunscrições territoriais e administrativas da colônia. Em 1709 foi criada a capitania de São Paulo e Minas do Ouro, desmembrada em 1720.

2 Somente entre 1725 e 1730, surgiriam as primeiras construções mais sólidas de pedra e cal.

3 Passagem - Prática fiscal adotada pelo governo colonial para a cobrança de impostos pelo tráfico de ouro e outras mercadorias em determinados passadouros (pontes e encruzilhadas).

4 Medicamento para aumentar o calor do corpo e a ação do estomago e do coração.

5 Sangrias e purgas eras os principais recursos terapêuticos da medicina galênica.

6 "os que vão do ombro para o pescoço e para a parte dianteira, a modo de travessas".